O que é riqueza pra você? A resposta não tem certo e errado, já que para cada pessoa ela terá um sentido diferente. Alguns podem pensar em bens materiais, como ter uma casa gigante. Outros podem apreciar um passaporte recheado de carimbos. Isso acontece porque a nossa definição de valor é muito atrelada às nossas visões de mundo e à cultura em que estamos inseridos.
Quando falamos em comunidades indígenas, por exemplo, a riqueza parte de alguns valores fundamentais dessa população. Nesse sentido, não há riqueza se não houver terra. Não há riqueza se o bem-estar da comunidade não for preservado. Não há riqueza se o trabalho não for reconhecido. Não há riqueza se ela for individual. É justamente por pensar dessa forma que a relação desses povos originários com um bem tão escasso como o dinheiro costuma ser complexa.
Pensando nisso, propomos uma reflexão: afinal, como as pessoas indígenas lidam com dinheiro? Essa relação é saudável? E o que os centros urbanos tem a ver com tudo isso? Descubra algumas respostas a seguir ou ouça o episódio completo do Semanada sobre o tema:
Povos indígenas no Brasil: quem são?
Quando falamos sobre questões indígenas, é essencial lembrar que estamos falando de muitos povos, com suas próprias características, culturas, idiomas e costumes. Em números, existem hoje quase 900 mil pessoas indígenas no país, espalhados por quase 14% do território brasileiro, com cerca de 305 povos distintos. Esse dado é do último censo do IBGE, realizado em 2010.
É por tudo isso que não dá para generalizar – e essa nem é possível. Resumir cada existência a uma caixinha única é também uma forma de epistemicídio, ou seja, de destruição de seus saberes e culturas. Por isso é preciso traçar pontos de contato entre uma experiência e outra, ouvindo diferentes vozes de quem se articula dentro e fora das aldeias.
Indígenas e dinheiro: como é essa relação?
Até aqui nós entendemos que a riqueza de um povo não se relaciona com bens materiais. Isso quer dizer que povos indígenas, de maneira geral, não dão importância para isso? Não, bem longe disso.
Dinheiro é importante e os acessos que ele pode trazer também são. Mas existe a compreensão de que ele, sozinho, não dá conta de preencher tudo aquilo que nos constitui. Isso é percebido tanto por um indígena que vive na aldeia, quanto por aqueles que se mudam para a vida urbana.
De forma geral, falar dessa relação é uma coisa nova, mas as dificuldades financeiras de populações indígenas são antigas. Pelo menos essa é a percepção do professor Almires Machado, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará.
Ele explica que, no período colonial, as pessoas indígenas já dependiam de dinheiro como mão de obra explorada. Mesmo com o passar do tempo, essa relação de exploração pouco mudou.
“Falando da região de onde eu vim, Mato Grosso do Sul, nos anos 1970, havia toda uma mão de obra indígena que era análoga à escrava trabalhando em usinas de cana. Mesmo com dificuldades, naquele momento o indígena visualizou uma chance de ter algum dinheiro, pois já não tinha condições de plantar na aldeia”, explica.
O professor Almires é das terras Jaguapiru/Bororó, em Dourados, Mato Grosso do Sul, onde vivem cerca de 20 mil indígenas numa área demarcada de quase 3.600 hectares de terra. Juntas, as duas aldeias formam a maior reserva urbana indígena do Brasil. Por esse motivo, ela é uma das únicas do país que depende exclusivamente do trabalho fora do campo. É tanta gente que fica difícil plantar e viver majoritariamente da agricultura, como fazem outros povos.
Antes de lecionar, Almires trabalhou em um canavial por 12 anos e não escapou da realidade triste que acabou de narrar.
“Quando eu percebi que lá era o fim, busquei os meios para entrar na universidade, com muita dificuldade. Debaixo de chuva, frio, às vezes até ia de barriga vazia pra sala de aula. Então, aqui está o grande problema: indígenas, sejam jovens ou não, eles vêm pra cidade sem garantia alguma de ter um sustento, uma fonte de renda. Quando conseguem uma bolsa, já é um bimestre depois”, relata.
Essa busca por melhores condições de vida fora das aldeias também se reflete em outros povos. Estima-se que 38,5% dos indígenas vivem em grandes cidades, sobretudo em São Paulo, mas também em Manaus, Boa Vista e no Rio de Janeiro.
Esses números também são do censo do IBGE. Por mais que a busca por educação formal seja difícil, ela é motivada por algo maior, como explica o professor Almires: “Hoje nós temos milhares de indígenas, nas mais diferentes universidades do país, se esforçando para permanecer na faculdade e se empoderar desse conhecimento acadêmico para usá-lo em defesa dos direitos do seu povo”.
Mudanças climáticas: o que elas têm a ver com tudo isso?
Para além da busca pelo ensino superior, um outro fenômeno tem mexido muito com a vida dos povos indígenas: as mudanças climáticas.
A pesquisadora Marina Pereira Novo é do Centro de Pesquisas em Etnologia Indígena da Unicamp, uma das primeiras universidades do país a abrir um vestibular indígena. Ela esteve em contato com os Kalapalo, povo indígena residente no Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso, enquanto escrevia o doutorado. Essa região foi a primeira a ter seu território demarcado, fato que já garantiria uma certa integridade territorial, ou seja, que as terras deles em teoria estariam protegidas. Mas na prática… Não é bem assim.
“Essa é uma região que, entre muitas aspas, é “protegida” em comparação com outras terras indígenas. Mas mesmo assim, se a gente olha o mapa, dá pra ver o limite do parque e as fazendas completamente devastadas em volta. Isso significa mais queimadas ao longo do ano, aquecimento, diminuição do fluxo de água dos rios, enfim. Existem várias questões ambientais ali”, detalha.
A pressão que o próprio entorno tem colocado sobre pessoas indígenas cria muitas camadas de desigualdade social e de pobreza. Muitas comunidades são empurradas para regiões inadequadas à moradia por verem suas terras devastadas pela exploração. Falta água, falta peixe, falta terra boa para plantio. É quase como se as fossem “expulsas” da aldeia pela própria natureza, que não dá mais conta de se renovar sozinha.
É por isso que, em muitos casos, a migração acaba sendo forçada pelo próprio contexto. Quando esses indígenas chegam na cidade, as oportunidades de emprego e renda não são tão grandes. Muitos são empurrados para as periferias das cidades, sem as mesmas oportunidades de emprego, tendo que lidar com a exclusão social e territorial.
Sem terra e sem trabalho, como conseguir dinheiro?
Cada um se vira como pode. Uma coisa que o professor Almires pontuou foi a importância de programas sociais e auxílios governamentais que contemplem a população indígena. Outra forma de fazer o dinheiro render é trabalhando com o artesanato. O que começou como uma alternativa virou a principal fonte de renda da empreendedora We’e’ena Tikuna, do povo Tikuna, no Amazonas.
“Na aldeia, nós somos muito ricos. Nós temos o nosso alimento, que vem da terra, a água, a chuva, o sol. Na minha terra, território do povo Tikuna, temos uma terra muito boa para plantação. Quando nós viemos pra cidade, meus pais viram a necessidade de poder manter os filhos. Não tinha mais como viver da natureza, mas sim viver como o homem branco, ou seja, trabalhar. Então começamos a vender artesanato do meu povo como colares, brincos, tapetes e cestas para sobreviver na cidade”, conta.
A família da We’e’ena saiu da aldeia quando ela tinha 12 anos, e ela e os irmãos foram a primeira geração a ingressar no ensino superior. Hoje, ela é formada em Nutrição e Artes Plásticas, além de administrar os negócios de sua própria grife, que leva seu nome e produz roupas e bonecas com estampas nativas. Tanto ela quanto os irmãos se articulam para levar a outros aldeados um pouco do que aprenderam. Um desses aprendizados tem a ver com educação financeira no mundo urbano.
O futuro é um conceito curioso
We’e’ena explica que o pai dela nunca guardou dinheiro pois o futuro era um conceito abstrato para ele. O hoje sempre foi mais importante, pois o amanhã “é uma história que não foi vivenciada”, conta ela.
A família dela só produzia quando todo o alimento acabava. Depois de adulta, ela foi percebendo que se quisesse viver o estilo de vida que gostaria, precisaria guardar dinheiro. “Na cidade, tudo te chama pro dinheiro. Você vai querer um celular, você vai precisar de um dinheiro. Você vai querer uma roupa, você vai precisar de dinheiro. E pra ter tudo isso, você precisa do que? De trabalho. Trabalhar para você manter, além da alimentação, o status que você desejar”, diz.
A mesma coisa foi percebida pelo professor Almires. “Nós não temos educação financeira. Pra nós não tem futuro, pra nós tem presente. Agora, imagina a dificuldade: se eu tenho dinheiro e tem outros cinco indígenas que não almoçaram, eu pago para os cinco, mesmo que na janta nenhum de nós tenha mais o que comer. Aos poucos, fomos nos dando conta, nas dificuldades, que precisávamos fazer de tudo pra segurar o tal do dinheiro”, relata.
Em agosto de 2019, um professor da Universidade do Pará conduziu uma pesquisa em duas aldeias indígenas no Território Cobra Grande, no mesmo estado. A equipe descobriu que 95% das famílias que lá viviam nunca tinham recebido orientação financeira e 85% se disseram endividadas.
A busca pelo bem viver
Falar de relação entre povos indígenas e dinheiro é lidar com questões culturais profundas e falta de dados sobre o tema. Construir políticas públicas que deem conta de incluir as diferenças que existem entre os povos do nosso território é uma tarefa gigantesca, e necessária.
Mas, como muitas coisas na cultura indígena, a solução talvez passe por um caminho de construção coletiva e de diálogo. Que o espaço fique aberto para que cada vez mais esses povos possam falar de suas próprias questões e buscar por respostas que não são contempladas hoje, na forma como a sociedade se estruturou até aqui.
Seja nos centros urbanos, ou nas aldeias, todo espaço deve ser um local de afirmação dos direitos indígenas. No fim das contas, estão todos buscando pela mesma coisa: o bem viver.
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