É sempre assim: depois de concluir uma tarefa difícil ou de sobreviver a uma semana caótica, é comum que você se permita gastar um pouco além da conta pra compensar o esforço. Afinal, você ralou e merece uma recompensa, certo?
Nessas horas, entra em cena o “eu mereço”, também chamado de autoindulgência. É esse comportamento que justifica os gastos feitos fora do orçamento. Seja fazendo aquele pedido especial no seu delivery favorito ou até fechando a compra de uma viagem inesperada, o ato de se mimar custa.
Em situações como essa, é quase como se o seu cérebro estivesse te sabotando: ele cria várias narrativas para te convencer de que aquela comprinha aparentemente inofensiva foi mesmo uma boa escolha.
O que pouca gente percebe, no entanto, é que ceder ao impulso com frequência pode fazer estrago nas finanças. Afinal, dá para aliviar as vontades sem cair em um buraco de dívidas? Como aliar sua autoindulgência com o autocontrole financeiro? Descubra a seguir.
Efeito “eu mereço”: por que compramos por impulso?
Antes de falar do bolso, precisamos falar do cérebro. Existe um sistema de recompensa muito bem arquitetado dentro da cabeça de cada pessoa que é ativado por um neurotransmissor chamado dopamina.
Toda vez que uma pessoa realiza uma ação prazerosa, o cérebro produz essa substância. É a dopamina que dá aquela alegriazinha em um jantar gostoso, em um show do seu artista preferido, ou na hora daquele mergulho no mar. Esse estímulo cerebral faz com que você entenda que essa é uma atividade boa e, por isso, deve ser repetida.
A satisfação e a sensação de bem estar que uma pessoa experimenta depois de uma compra, por exemplo, não é à toa. De algum modo, o cérebro já entendeu que comprar também produz dopamina – e é justamente aí que mora o problema, porque nem todos os prazeres da vida moderna são necessariamente bons, seja pro seu bolso ou para sua saúde.
Entre razões e emoções
Quando sua razão e a sua emoção parecem duelar na cabeça, o “eu mereço” entra em cena. No fundo, você sabe que não deveria abusar do cartão de crédito, mas naquele momento é quase como se o seu cérebro te convencesse a consumir. “Vai lá, compra mesmo, você merece”.
Mas, se te serve de consolo, saiba que está todo mundo no mesmo barco: essas pequenas indulgências têm a ver com um comportamento coletivo dos consumidores que, por estarem cada vez mais esgotados, buscam por pequenos prazeres como uma forma de compensar o estresse da vida moderna.
Em 2020, por exemplo, a população mundial viveu seu maior nível de estresse em mais de 15 anos, segundo o estudo feito pela empresa norte-americana Gallup. A pandemia foi uma das principais causas para essa sensação – e aí, dá-lhe recebidinhos pagos por você mesmo. O cérebro agradece, mas o bolso chora.
Marketing: vilão ou mocinho?
O marketing te faz gastar mais, mesmo que você não perceba. Existe até uma vertente que olha com atenção para o comportamento humano: ela é chamada de “neuromarketing”.
Muitos estudiosos já se dedicaram ao tema, incluindo um professor de Harvard chamado Gerald Zaltman. Ele é autor de um livro famoso na área, intitulado “How Customers Think”, que, em tradução livre, significa “como os clientes pensam”. Nele, Zaltman conduziu pesquisas para entender quais emoções podem motivar uma nova compra.
O pesquisador descobriu que 95% das nossas decisões são tomadas pelo subconsciente. Isso significa que, para as marcas, é mais interessante se relacionar com clientes de uma forma emocional do que só listar as qualidades de um produto ou serviço. Ou seja: os seres humanos são movidos por sentimentos, em todos os aspectos.
Esse assunto também é pauta para a psicologia comportamental. O professor Emerson Costa, do departamento de Psicologia Comportamental da PUC Campinas, explica que uma escolha é formada por três pilares: a história evolutiva da espécie humana, a história pessoal de cada indivíduo e a cultura onde esse indivíduo está inserido. As escolhas impulsivas são, justamente, um reflexo dos três, se relacionando com a biologia e com as práticas da cultura em que vivemos.
Por que compramos por impulso mesmo sabendo que não faz bem no longo prazo?
A resposta tem relação com a evolução. Foi o impulso primitivo de responder aos prazeres do curto prazo que ajudou seres humanos a chegarem tão longe. Esse impulso existe pela sobrevivência: não fossem as respostas imediatas, a espécie teria pouca motivação para caçar, se reproduzir e sobreviver. Esse padrão de comportamento é antigo e também pode ser observado em outros animais. Do ponto de vista evolutivo, isso foi vantajoso, como explica o professor Emerson.
“A seleção natural nos fez imediatistas. As consequências a longo prazo não têm poder no nosso comportamento e, por isso, o indivíduo é ensinado a esperar por consequências cada vez mais atrasadas na sua vida. Cada vez que abrimos mão da autoindulgência, significa que a nossa história pessoal nos salvou da nossa forma mais comum de agir”, diz Emerson Costa.
Viu só? Num mundo em que não existiam garantias de amanhã, o hoje era sempre mais importante – e nem faz tanto tempo assim que a expectativa de vida de uma pessoa era baixíssima. Hoje, o IBGE estima que um brasileiro vive, em média, até os 72 anos. Em 1940, a média era de que uma pessoa sobreviveria somente até os 45 anos.
O estilo de vida das sociedades modernas foi mudando ao longo do tempo e de um jeito muito rápido. Por isso, é normal que o cérebro recorra a padrões mais antigos de comportamento, já que novas tendências biológicas levam mais tempo para serem assimiladas.
Então quer dizer que… eu não mereço?
Calma, não é isso! Você merece – e muito. As pequenas indulgências são boas e necessárias para que você tenha estímulos para construir a vida que quer viver.
Valorizar o próprio trabalho ou se permitir ter um momento de descanso após uma tarefa difícil não é errado. Se auto presentear é uma forma de alimentar a paixão que existe dentro de você. Ir ao cinema, comprar uma roupa nova, viajar… são pequenas recompensas que deixam o coração quentinho.
Além disso, não é porque você entendeu a forma como seu cérebro trabalha que será mais fácil dominá-lo. É preciso entender que, se o “eu mereço” passou do ponto e alguma coisa saiu do controle, existem formas de recalcular a rota e voltar para o seu eixo.
Histórias reais
Foi olhando para o guarda-roupa que Beatriz Biasillo entendeu que tinha algo errado. A jovem paulistana é apaixonada por moda, tanto que trabalha na área. Mas essa paixão, junto com a tendência do cérebro de ceder ao primeiro impulso, fez com que ela tivesse dificuldade em perceber que os mimos pagos por ela mesma estavam abrindo um buraco no orçamento.
“Eu acho que isso se encaixa como uma desculpa. Então, se eu tô triste, compro pra ficar animada. Se eu tive uma semana boa, compro pra comemorar. Hoje eu consigo ter um pré-julgamento: eu gasto, mas eu gasto conscientemente. Antes isso não acontecia, tanto que era muito comum eu ter peças no guarda-roupa com etiquetas”, diz Beatriz Biasillo.
Um cafezinho especial num dia em que você precisa de um afago pode fazer bem. Mas o mesmo cafezinho todo dia, logo que alguma coisa errada aparece, pode virar um estrago na sua conta. O ponto aqui é se perceber: quais situações te causam mais vontade de sair por aí comprando tudo o que vê? No caso da jornalista Paula Kern, a causa foi o estresse gerado pela pandemia.
“Eu percebi que isso tinha virado um problema quando comecei a ver que a fatura do cartão vinha basicamente o valor que eu tenho pra gastar por mês. Nunca me faltou comida, mas era aquela coisa: eu passava tudo no crédito porque a minha conta estava zerada. Eu estava gastando tudo para pagar os presentinhos que eu me dei durante a pandemia. Foi uma maneira de ter planos pro futuro e manter a sanidade. Só que isso me gerou um problemão”, afirma Paula Kern.
A felicidade instantânea da jornalista carioca nasceu a partir do consumo desenfreado de viagens que poderiam nem acontecer. O gatilho que a fez consumir tanto era o das promoções: a baixa demanda de viagens no auge da pandemia fez com que muitas empresas diminuíssem os preços, com valores que eram o sonho de qualquer viajante.
O segredo para sair dessa, no caso delas, e no de quem também já se viu nessas situações, é perceber que pode existir um meio termo saudável entre o sim e o não. Pode ser algo do tipo “sim, eu mereço, mas não agora”. Ou ainda “eu me planejei, logo eu mereço e vou comprar este item”. É muito importante identificar situações estressoras e reconhecer os seus limites.
Se o seu “eu mereço” tem origem no estresse causado pelo trabalho, por exemplo, pode ser interessante enfrentar diretamente a causa do problema com pessoas que podem te ajudar a encontrar uma solução. Talvez uma mudança de rotina na própria empresa ou uma conversa franca com a chefia não te deixe chegar ao limite.
Como eu melhoro meu autocontrole financeiro?
Para encontrar mais equilíbrio no dia a dia, é necessário fazer um esforço real para ativar o córtex pré-frontal, uma outra área do cérebro que também se relaciona com o sistema de recompensa, mas que te ajuda a tomar decisões ponderadas, pensando nos benefícios futuros.
Uma boa analogia é pensar nela como um músculo: quanto mais você usa, mais fortalecida ela ficará. Com isso, vai ser mais fácil executar ações que não são tão prazerosas, mas que vão te livrar de um prejuízo futuro.
Outra dica é entender que cada pessoa exercita o próprio autocontrole de formas diferentes. Sabe quando você se compara e fica achando que poderia ter feito mais e melhor? Nem sempre é verdade, como explica novamente o professor Emerson Costa.
“Alguém pode ser ótimo em realizar comportamentos de autocontrole para seguir dietas e praticar exercícios, mas ao mesmo tempo ter dificuldade em controle financeiro. Outra pessoa já pode ser ótima em fazer tudo o que precisa para guardar dinheiro, mas tem muita dificuldade em colocar os exames médicos em dia. Como os comportamentos de autocontrole são regulados por condições individuais, é normal que uma pessoa apresente mais autocontrole em um aspecto da vida do que em outro”, afirma.
Uma questão de estratégia
O professor Emerson também diz que criar condições diferentes daquelas que te estimulam a comprar é fundamental. Nem sempre você será capaz de identificar e dar adeus aos gatilhos que te levam comprar mais, mas existem estratégias que qualquer pessoa pode adotar, como:
- Deixar o cartão de crédito em casa e sair com uma quantidade de dinheiro limitada;
- Substituir atividades de lazer no shopping por outras em que os estímulos sejam menores;
- Ao sair para fazer compras, você pode listar apenas os itens fundamentais;
- Conversar com outras pessoas sobre o problema. Por mais tentador que seja aceitar um convite pra um happy hour fora do planejado, você pode usar a oportunidade para trocar experiências financeiras com as pessoas que participam da sua vida e descobrir se outros amigos passam pela mesma situação.
O importante é perceber que, com planejamento, organização e um empurrãozinho do seu cérebro, o “eu mereço” não se torna problema, mas sim uma satisfação da qual você não precisa abrir mão. Se organizar direitinho, todo mundo merece ainda mais.
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