Se você tivesse que listar os Direitos Humanos, de quais se lembraria? Provavelmente vem à cabeça o direito à moradia digna e à alimentação. O direito à saúde, claro, e também à educação. O direito de ir e vir e à liberdade de expressão são muito lembrados, não é?
Tudo isso consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma resolução de 1948 das Nações Unidas que até hoje serve de base no mundo para estabelecer o que significa ter uma vida decente. Mas tem um direito meio esquecido, ali no artigo 24, que às vezes é jogado para segundo plano. Ele diz assim:
“Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.”
Em teoria é um direito muito importante. Mas, com inflação em alta, desemprego, salário curto, custos altos para participar de atividades culturais e de entretenimento, o direito ao lazer é o primeiro a cair da lista de prioridades.
Abaixo, saiba mais sobre como anda o direito do brasileiro ao divertimento, quanto custa se divertir, e como priorizar isso no orçamento quando for possível. Você também pode ouvir o conteúdo completo em áudio no podcast Semanada.
A importância do ócio
Faz parte da cultura brasileira glorificar o trabalho e condenar o descanso. Existem várias frases de conhecimento popular que confirmam isso. “O trabalho enobrece o homem”. “Deus ajuda quem cedo madruga”. “Fulano está no mundo a passeio”.
Provavelmente você já escutou essas e outras, e já se sentiu culpado por talvez sucumbir à preguiça em um momento em que era esperado que estivesse sendo “útil”.
Mas essa aversão da sociedade ao ócio não se justifica. Na verdade, existem estudos que mostram que algumas figuras geniais do mundo só conseguiram cumprir bem com suas obrigações porque também descansavam bastante.
Em uma pesquisa da Universidade de Berkley, na Califórnia (Estados Unidos), o professor de psicologia Alex Soojung-Kim Pang estudou a agenda de alguns dos maiores pensadores da história e descobriu que não eram exatamente fissurados pelo trabalho.
Era o caso do naturalista britânico Charles Darwin, que pegava no batente por cerca de quatro horas e meia por dia, em dois blocos de pouco mais de duas horas – pela manhã e no fim da tarde. E separava o restante do tempo para longas caminhadas, sonecas, passeios… e, nesse ritmo, escreveu mais de 19 livros que mudaram o futuro da biologia.
Assim também era a agenda de outros gigantes, como o escritor alemão Thomas Mann, vencedor de um prêmio Nobel, e do escritor britânico Charles Dickens, autor de clássicos como “Oliver Twist”.
Existem hoje muitas discussões sobre os benefícios da redução da jornada de trabalho. Mas o ponto aqui é que, além de ser um direito humano, descansar e se divertir é inclusive considerado bom para a produtividade.
O que é lazer, afinal?
De maneira geral, lazer é tudo o que alguém faz com o próprio tempo livre. Se no seu tempo livre você aproveita para limpar a casa, ele não é livre só porque o trabalho não é remunerado. Tempo livre é aquele isento de obrigações. E as tarefas domésticas, por exemplo, fazem parte das obrigações do dia a dia.
Este conceito foi elaborado pelo sociólogo e professor Joffre Dumazedier, da Universidade Sorbonne, na França. Ele é a maior referência acadêmica quando se fala em lazer.
Dumazedier entendeu que a ideia de tempo livre surgiu no modo de produção capitalista, e foi firmada quando os trabalhadores começaram a ter direitos garantidos. O tempo livre aparece em oposição ao tempo produtivo. Ou seja: tudo o que não for produção, é ócio. Pode parecer óbvio hoje, mas essa foi uma revolução na forma como se entende o uso do tempo.
Imagine tudo o que surge a partir dessa oportunidade de aproveitar o tempo livre. Existe a indústria do turismo, a cultural, do esporte, videogame e mil maneiras de experimentar o lazer.
Pode envolver aprender algo, como visitar um museu, ou alguma atividade, como fotografar. Pode ser um momento mais passivo, de viagens contemplativas pela natureza ou para a praia. Ou então jogar uma pelada com os amigos no fim de semana, e por aí vai.
A maior parte dos exemplos envolve um empecilho: gastar dinheiro. Um estudo da consultoria PwC estima que o faturamento do setor de mídia e entretenimento no Brasil tenha sido de US$ 43 bilhões em 2021, o nono maior mercado do mundo. Já o turismo brasileiro, ainda se recuperando da pandemia de Covid-19, registrou R$ 152 bilhões de faturamento em 2021.
Então o lazer é uma atividade econômica, custa dinheiro e precisa ser incluído no orçamento, quando possível, para que possa acontecer.
Como o brasileiro se diverte?
É comum ouvir que existem muitas opções gratuitas de lazer para aproveitar o tempo livre. Mas isso, geralmente, é uma meia verdade. A atividade em si pode até ser na faixa, mas e o transporte até chegar nela? E a alimentação? Especialmente para as pessoas que vivem nas periferias das grandes cidades, os equipamentos de lazer, como parques, cinemas e centros culturais, estão bem longe. E esses gastos de deslocamento e alimentação pesam para as famílias de baixa renda.
Quanto eles pesam e a maneira como pesam varia bastante na sociedade. Existem festivais de música em que o ingresso custa mais de um salário mínimo. Voos, às vezes até nacionais, por milhares de reais. Tem peça de teatro com ingresso na casa das centenas. Ir ao cinema e emendar um jantar em família? Para dois adultos e duas crianças, essa conta sai fácil na casa dos R$ 200.
E também tem rolê na praia, no parque, que pode custar só o valor da passagem de ônibus e um lanchinho para matar a fome. Portanto, o lazer também é amplo em suas possibilidades para os bolsos. Mas não dá para dizer que é fácil acessar esse direito ao lazer e à diversão sem gastar dinheiro. Ou melhor, não dá pra dizer que todo mundo tem as mesmas oportunidades de se divertir.
As despesas com lazer são as que mais afetam a renda dos consumidores, segundo uma pesquisa de 2015 do SPC, o serviço de proteção ao crédito. Em média, os brasileiros gastam R$ 389 por mês com entretenimento tipo cinema, balada, barzinho… O maior gasto nesse quesito é com viagens curtas de fim de semana.
Esse estudo também investiga a motivação da compra. Para os entrevistados, a despesa com lazer é a que mais traz realização, felicidade e segurança. Ou seja, está ligada a sentimentos positivos, o que nem sempre é verdade para gastos com roupas, por exemplo, que aparecem com frequência vinculados à culpa.
Desigualdade da diversão
O Brasil é um país bastante desigual, e é importante ter uma visão do recorte de renda quando se fala nessas despesas. A mesma pesquisa do SPC revela que os gastos com lazer consomem, em média, 43% da renda das classes A e B. Já nas classes C, D e E, não passa dos 30%, já que os custos com alimentação e outras despesas essenciais acabam pesando bem mais na renda dessas camadas sociais.
O IBGE divulgou, em 2021, os resultados da POF, a pesquisa de orçamentos familiares, e trouxe um dado importante sobre o uso do dinheiro para atividades de lazer. As famílias chefiadas por pessoas brancas gastam quase o dobro em lazer e viagens do que famílias chefiadas por pessoas pretas ou pardas.
Aqui vai outro dado do IBGE: as despesas com lazer dos 10% mais ricos são 31 vezes maiores do que as dos 10% mais pobres.
O que dá pra concluir disso? Que o direito ao lazer ainda é mais garantido para algumas pessoas do que para outras. Na hora de montar um orçamento, se for preciso cortar despesa é o lazer que dança. Ou melhor, não dança. E isso fica refletido nos recortes de classe e raça dessa categoria de despesa.
Como incluir o lazer no orçamento?
Existem várias dicas financeiras para montar um orçamento mensal. Uma das mais conhecidas é a regrinha 50-15-35, que se divide assim:
- 50% da renda vai para gastos essenciais, como aluguel, luz, água.
- 15% é destinado a prioridades financeiras, tipo montar uma reserva de emergência, pagar dívidas ou investir.
- E 35% fica separado para o seu estilo de vida, e aí inclui lazer, viagens, saidinhas para comer naquele restaurante da moda, beber com os amigos, etc.
Talvez você não tenha clareza de como aplicar essa matemática na sua renda e aí vale dar dois passos para trás e começar do básico: uma planilha para entender para onde o seu dinheiro está indo.
Coloque em uma planilha um mês de todos os seus gastos – e separe por categoria. Assim, vai dar para entender como está sendo sua divisão e perceber onde tem espaço para remanejar.
Fica mais fácil aplicar a regrinha 50-15-35 depois de entender como você prioriza seus gastos. E, claro, você é quem sabe onde aperta o calo, e, por isso, pode fazer um balanço mais coerente com a sua vida no momento.
Se, por exemplo, estiver com dívidas altas, destinar 15% da renda para isso talvez não seja suficiente e os 35% com despesas para estilo de vida pareça exagerado. Adapte como for melhor, mas tente não fugir muito da regra.
Muita gente só consegue bancar o básico, e, às vezes, nem isso. Segundo o IBGE, 46% dos brasileiros atrasaram pelo menos uma conta fixa por não ter como pagar. Nesse caso, o lazer vai lá pro fim da lista de prioridades porque não dá para competir com moradia, alimentação, saúde.
Mas é importante não tirar da cabeça e das metas que os momentos de lazer são mais que uma vontade, eles são um direito seu. Enquanto as contas não melhoram, tente buscar alternativas perto de casa, gratuitas, ao ar livre. Uma volta de bicicleta, uma caminhada pelo bairro podem te ajudar a enfrentar os momentos difíceis.
Então quanto custa se divertir no Brasil?
Não existe uma resposta definitiva. Depende de onde você mora, de quanto dinheiro tem disponível para investir nisso, de quais divertimentos você mais gosta. Mas, de forma geral, pode custar até 35% da sua renda mensal – se estiver com as contas em dia.
Ter um valor separado para isso pode te estimular a se engajar em novas atividades, ou traçar metas de viagens mais longas e caras, por exemplo.
O que importa, segundo o sociólogo Dumazedier, é que o lazer represente uma satisfação pessoal sua, seja para descansar, se desenvolver ou se entreter. Descansar é tão importante quanto trabalhar e, de novo, um direito humano.
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